terça-feira, 1 de setembro de 2009

Somos mais sofisticados

Paulo Brabo - Bacia das Almas

A leitura de Hitler teve ajuda me deixou inquieto, e ver o texto arquivado aqui na Bacia deixou-me ainda mais. Embora Edwin Black tenha publicado alguns dos livros-denúncia mais obsessivamente bem documentados dos últimos anos, quando são expostas assim a seco, despidas de qualquer bibliografia, suas conclusões soam excêntricas e improváveis ao ponto do surreal. Com os erros dos nazistas, aprendemos a ocultar melhor os nossos rastros.Como acreditar que o nazismo existiu e persistiu por mais de uma década na forma como ele o descreve? Como crer que eram seres humanos os envolvidos naquela transação?

Pesquisas como as de Black fornecem indicações de que não é à toa que associamos, inconscientemente, as atrocidades do nazismo aos pecados desumanizadores da indústria. Era ainda 1943 e o desenho animado Der Fuehrer’s Face, dos estúdios Disney, já mostrava o Pato Donald vivendo na Alemanha nazista um pesadelo proletário debaixo de roldanas, esteiras, engrenagens e metas de produção.

Porém essas eram imagens, iconografias – talvez por demais inclementes, tendo em vista que os norte-americanos viviam naquela época debaixo de limites semelhantes e semelhantes promessas. Foram necessárias multidões áridas de documentos, como os levantados por Edwin Black, para mostrar sem equívoco o fundamento e as estranhas irmandades por trás da representação.

Hoje podemos concluir, com horrenda sobriedade, que o nazismo era uma indústria de morte e exclusão não porque era regido por loucos sem rédea, mas porque era regido literalmente pelo espírito do capitalismo.

Henry Ford, o americano obcecado com os méritos da performance, engendrou a moderna linha de montagem e dessa forma gerou tudo no nosso mundo: de tuíteres a iPhones, de ilustradores que vendem seu trabalho pela internet a fábricas chinesas que mais parecem campos de concentração. Adolf Hitler, o austríaco obcecado com os méritos da performance, tinha um retrato de Henry Ford em seu escritório de Munique, e dois anos antos de tornar-se chanceler revelou numa entrevista ter Henry Ford “como sua inspiração”.

Essa mostrou ser uma inspiração muito literal. Os campos de extermínio assemelham-se a fábricas de matar porque foram projetados tomando como modelo fábricas de verdade. Tudo nos campos nazistas foi inspirado nas luzes do recém-canonizado capitalismo industrial: as metas, a obsessão com a produtividade e com a limpeza, as chaminés, a sincronia na entrada de insumos, a eliminação eficiente de dejetos.

Porém Henry Ford e Adolf Hitler tinham em comum mais do que uma simpatia pela eficiência e um interesse nos prêmios da mecanização. Ambos compartilhavam de uma convicção mais essencial e mais próxima à raiz dos seus discursos: a crença de que uma raça superior, que fosse capaz de demostrar sua superioridade pela excelência de seu desempenho, merecia privilégios muito evidentes que todos os inferiores deveriam respeitar. Este, que prega o mérito auto-evidente do desempenho superior, não é apenas o espírito do nazismo, como demonstrado pela História, mas o espírito do capitalismo, como ocultado por ela.

Desprezamos Hitler porque sabemos que a superioridade racial que Hitler queria ver premiada não tinha fundamento científico. Sabemos hoje que ser ariano é não ser melhor do que ninguém. A superioridade pregada por Hitler era falsa, portanto as atrocidades realizadas em seu nome declaramos ilegítimas.

Aceitamos de bom grado o capitalismo porque sabemos que a superioridade que ele quer ver premiada tem fundamento no bom senso e na igualdade de oportunidades; ser trabalhador é, evidentemente, ser melhor de quem não quer trabalhar ou não foi capaz de mostrar o seu valor. Acreditamos que a superioridade pregada pelo capitalismo é verdadeira, por isso são legítimas as atrocidades realizadas em seu nome. Quem demonstra sua superioridade pela excelência do seu desempenho merece privilégios muito evidentes que todos os inferiores devem respeitar – e crendo nisso nos cremos muito diferentes de Hitler e tantas vezes mais esclarecidos do que ele, embora fosse essencialmente nisso que ele acreditava e sendo isso o que o movia.

A questão é que depois dos erros muito evidentes e públicos do nazismo aprendemos a ocultar melhor os nossos rastros. Onde os nazistas deixaram pontas soltas, somos mais sofisticados. Ninguém deverá ser capaz de rastrear nossos cadáveres, e nossos campos de concentração produzem oportunidades ao invés de montes de cinza.

A quem ousar acusar o capitalismo de alguma injustiça estaremos prontos a lembrar que o socialismo (como se capitalismo selvagem e socialismo cego fossem as únicas opções no mercado de destinos econômicos) gerou injustiças maiores. Aos que ousarem denunciar as condições desumanas de pobres e subempregados, lembraremos que as últimas décadas testemunharam um sensível aumento nos padrões de vida do mundo inteiro, e que mesmo os mais miseráveis estão sendo de alguma forma beneficiados.

O que permanecemos ocultando habilmente, com uma habilidade que os comparsas de Hitler saberiam admirar, é que a raça superior continua a desfrutar de seus merecidos privilégios. O rótulo é diverso, mas permanecemos fundamentados na mesma ideologia e instruídos na mesma tarefa de exclusão e morte.

20% da população do planeta consomem 80% dos recursos dele.Poderíamos de comum acordo decidir ignorar, por exemplo, que 2% da população mundial retém metade da riqueza do mundo. Esqueçamos isso. Sou o primeiro a admitir que “riqueza” é um conceito muito fluido, e que o valor do dinheiro é puramente convencional. Em termos estritos, dinheiro não vale nada.

Muito mais grave, mais irreversível e criminosa é a realidade subjacente, o fato de que 20% da população do planeta consomem 80% dos recursos disponibilizados por ele – coisas como água potável, ar respirável, madeira nativa, minério, metais, petróleo e biodiversidade.

Os premiados pela performance – nós, os membros da raça superior – sentimo-nos autorizados para não apenas confiscar, mas consumir numa transação sem volta os recursos que pertencem a todos.

Este é o nosso crime, e com o tempo os tribunais da sanidade saberão nos encontrar.

2 comentários:

Sávio Heringer disse...

Fantástico o texto. Parabéns!

A permissividade excessiva de consumo de uns gera escassez de recursos básicos para muitos. E o capitalismo tão "eficiente e justo" ainda não conseguiu de longe apontar uma solução para esse problema.
Os poucos que se aventuram pelo socialismo viram vilões e inimigos da liberdade no mundo moderno.
Não sou um estudioso de ciencias políticas e tão pouco entendo do assunto, mas acho que seria muito interessante conhecer as outras alternativas ao capitalismo selvagem que diz: ter é ser.

Vanessa Paschoa disse...

ótimo texto. grata por ter me proporcionado esta leitura.

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