Porque eu não pude viver como vocês?
Quem lhes dá o direito de me privar do direito de viver?
Maria do Socorro viveu apenas 13 dias.
Deitado na rede, não dormi. Fiquei olhando o céu pelos buracos nas paredes e nas telhas. As paredes são de barro. Eu pensava nas 18 crianças que acabei de batizar. Quantas ainda estariam vivas depois de um ano? Na minha memória voltava a cena dos batizados que fiz na sede da paróquia no mês anterior.
Era domingo, 19 de outubro. Havia 43 crianças para serem batizadas. Uma delas se chamava Maria do Socorro. Trazida por Raimunda, a irmã mais velha, ela já estava morrendo. Pediram que eu fizesse o batismo quanto antes, pois a criança podia morrer a qualquer momento. Batizei-a ali mesmo, na casa paroquial, e prometi a Raimunda fazer uma visitinha na casa dela. Á tarde fomos lá. Casa muito pobre. Tão pobre quando a casa de Genésio e Totônia onde eu estava deitado do na rede, olhando o céu pelos buracos das parede e das telhas, lembrando o fato. A única diferença era a cor do barro. Barro escuro, quase preto. Entramos.
A mãe de Maria do Socorro tinha morrido no parto, treze dias antes. O pai tinha fugido. Ficaram os dez irmãos e irmãs para acolher a nova irmãzinha, Maria do Socorro. Eles estavam lá todos. Todos pequenos. Na semi-escuridão da sala, vi a turminha, em pé, ao redor da Raimunda, que estava sentada com a irmãzinha, mais nova no colo. Nunca mais vou esquecer esta cena trágica. Raimunda, ainda não refeita da morte da mãe e da fuga do pai, enfrentava hoje a morte da irmã mais nova e teria de arcar com a responsabilidade de educar seus dez e teria de arcar com a responsabilidade de educar seus dez irmãos. Pelo jeito dela, não parecia ter mais de 15 ou 16 anos.
Entramos e perguntei:
– Morreu?
– Ainda não! Ainda tem um pouquinho de vida nela. Alguns minutos atrás, ele deu um soluço!
Diagnóstico de pobre! Ficamos todos em silêncio sem saber o que fazer ou dizer. Todos olhando para Maria do Socorro, no colo da Raimunda. Na mãozinha pequena segurava a vela acesa do batismo. O vestido era branco e comprido, vestido do batismo. A vela tinha sido acesa no círio pascal. O símbolo da vida, agora de novo crucificado, aqui, nesta vida indefesa de Maria do Socorro, cuja mãe morrera, dando a sua vida por esta menina que estava morrendo! Ninguém falava nada! Falar o quê? Quem defende a vida? Maria pedia socorro! E não havia quem pudesse salvar a sua vida! Todos impotentes diante da morte! Quem estava massacrando esta vida nova? A mão assassina era invisível. Não aparecia! Como em Belém:
“Em Rama se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação porque eles já não existem” (Mt 2,17).
Isto aconteceu, quando Jesus acabava de nascer para proteger a vida! Onde Jesus renasce hoje, para reassumir a defesa da vida contra a morte, contra a mão assassina de Herodes? Aqui, nem lamento havia mais. A fonte das lágrimas parecia ter secado. Tamanha era a dor, misturada nos fato!
O Herodes de ontem podia ser acusado, porque o seu crime era manifesto. Ele tinha nome. O Herodes de hoje passa livre e honrado. Ninguém o acusa, porque o seu crime não aparece. Ele perdeu o nome. Quem estava matando Maria do Socorro naquela sala pobre de sapé? Quem? Os irmãos dela não sabem responder. Não sabem nem levantar esta pergunta. Eles só viam o imediato: a irmãzinha morrendo nos braços da Raimunda. Talvez repitam a frase, tantas vezes ouvida: “Paciência! Vida de pobre é assim mesmo!” Será?
Irmã Maria quebrou o silêncio:
– Raimunda, quanto tempo faz que a Maria do Socorro ficou assim? Ela nasceu doente?
– Nasceu não, senhora! Nasceu forte.
– Então, o quê que houve?
– Anteontem, deu uma diarréia nela. Por isso, está assim.
Era desidratação! Irmã Maria continuou perguntado:
– O que vocês estão dando para ela?
– A gente dá o que tem: um pouco de leite Ninho em pó!
– Só?
– Só!
Para quem entende destas coisas, sabe que tal remédio, em vê de melhorar, acaba de matar criança com diarréia. Mas eles não tinham outra coisa. Não havia médico! Não havia remédio! Não havia receita! Não havia nada!
Nesta hora Raimunda mexeu com o dedo nos olhos de Maria do Socorro e disse:
– Acho que ela morreu. Não mexeu mais com os olhos. Morreu, sim! Morreu!
Os outros repetiam em coro, murmurando:
– Morreu!
Atestado de óbito de pobre! Raimunda levantou-se, colocou o corpo de Maria do Socorro em cima da mesa e disse para um dos irmãos:
– João, vai comprar uma vela no botequim! Vai logo! Pegue o animal!
João sai correndo.
Maria do Socorro morreu. Viveu 13 dias! Nasceu, viveu, morreu. Não teve registro de nascimento, não teve atestado de óbito. É como se não tivesse existido. Nada falou, apenas chorou. É como se não tivesse existido. Nada falou, apenas chorou. Leve como uma pluma, não pesava nem 3 quilos. Mas a sua morte pesa, peso grande! Ela grita mais forte do que qualquer pregador ou político. Ela acusa a humanidade:
– Porque eu não pude viver como vocês? Quem lhes dá o direito de me privar do direito de viver?
Mas estas reflexões e perguntas, sou em quem as faço. Os irmãos, os pobres mesmos, eles ficavam só olhando. Não se revoltaram. Choraram um pouco.Acenderam as velas, trazidas por João. Velaram o corpo. E na boca da noite, levaram a irmãzinha para o cemitério: sem cerimônia, sem atestado de nascimento nem de óbito, sem pai, sem mãe! Mais um “anjo” a engrossar as fileiras da multidão dos “anjos” que nos acusam:
“Tome cuidado, disse Jesus, para não desprezar nenhum desses pequenos, porque eu digo para vocês: os anjos desses meninos estão o tempo todo bem pertinho do meu Pai, lá no céu!” (Mt 18,10)
Estávamos olhando o corpo morto da menina. Alguém disse:
– Vamos embora!
– Convém rezar um pouco!. Disse eu.
– É bom! Disse Raimunda.
Mas rezar o quê? Pregar a revolta? Adianta cortar jacarandá com gilete, derrubar avião a jato com pedra de estilingue?
Rezei:
– Senhor Jesus, Maria do Socorro acaba de entrar no céu. Reencontrou sua mãe. Nós ficamos cá embaixo, sem saber como cuidar da saúde e da vida do povo. Nós Vos pedimos: fazei que Maria do Socorro e sua mãe nos venham socorrer, para que nunca deixemos de cuidar da vida e da saúde dos irmãos e para que eliminemos da vida tudo o que a mata e oprime!
Saímos. Falamos pouco. Mais um “anjo”!
Pedro desabafou:
– E o pior é que isso acontece todos os dias, e ninguém o percebe!
– Fiquei arrasado. Festa bonita! Quase cinqüenta batizados! Igreja cheia de gente! O prefeito no primeiro banco!! E a menina morrendo por falta absoluta de condições de viver! Tem valor uma cerimônia assim? Não sei não!
A noite daquele mesmo dia, já em casa, recebemos a visita de Dona Maria, nossa vizinha, já bem gorda, cujo filho acabou de nascer na véspera da nossa viagem como já contei. Terezinha perguntou:
– Dona Maria, quando vai descansar?
– No mês que vem.
– Vai descansar aqui mesmo ou no hospital?
– Aqui mesmo!
– Porque não vai no hospital, mulher?
– Sei não! Cova de mulher se abre, quando pega criança na barriga, e fecha um mês depois de descansar! Nascimento de menino parece que faz a gente chegar mais perto da morte!
– Acha bom ter criança todo ano?
– Sei não. Pobre é assim mesmo. Tem muitos filhos. Os ricos que tem tudo não têm criança quase. É castigo de Deus! Não é?
Riu e puxou o peito para dar de mamar ao filho pequeno que carregava nos braços.
Uma história terrivelmente real retirada do Livro Seis Dias nos Porões da Humanidade - Carlos Mesters
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