Whatever happened, happened.
Jack Shephard
Na descrição clássica da “teologia forte”, Jesus estava apenas refreando seu poder divino a fim de deixar que sua natureza humana sofresse. Ele livremente escolheu cercear o seu poder porque o Pai tinha o plano de redimir o mundo através do seu sangue. Mas se seu Pai tivesse mudado de ideia aqueles soldados romanos iriam sem dúvida lamentar o dia em que nasceram, da mesma forma em que irão certamente lamentar na eternidade. Na minha visão, isso é interpretar erradamente aquela cena em termos unicamente de poder: poder terreno contraposto a poder celestial. Na minha visão, Jesus estava sendo crucificado, e não se refreando; estava sendo pregado ali e sendo executado muito contra sua vontade e contra a vontade de Deus. E ele nunca tinha ouvido falar da ideia cristã, que surgiria mais tarde, de que estava redimindo o mundo através do seu sangue. Sua abordagem diante do mal foi perdão, não o pagamento de um débito devido a seu Pai ou ao diabo, através de sofrimento ou de qualquer outro modo. Seu sofrimento não foi uma moeda em câmbio local na economia do reino. O reino não é uma economia, e Deus não comparece a esta cena como um escriturário de débitos divinos, ou como um alto poder que assiste a coisa toda lá de cima enquanto voluntariamente refreia seu infinito poder de intervenção. Isto é mais uma teologia cosmetizada, é fraqueza que fantasia com um orgasmo de poder – se não agora, poder mais tarde, quando poderemos realmente nos vingar daqueles romanos odiosos.
Essa não é a fraqueza de Deus que estou defendendo aqui. Deus, o evento refugiado no nome de Deus, está presente à crucificação como o poder da ausência-de-poder de Jesus, em e como protesto contra toda injustiça que brota da cruz, em e como palavras de perdão, e não como um poder adiado que visitará mais tarde os seus inimigos. Deus comparece na qualidade de fraco agente do grito que clama do Calvário e clama através das eras, que clama de cada cadáver jamais produzido por todo poder injusto e cruel. O logos da cruz é um clamor de renúncia à violência, não algo que a oculta e adia para depois, numa atordoante façanha que apanha o inimigo de surpresa, abatê-lo com verdadeiro poder, demonstrando ao inimigo quem é realmente poderoso. Era precisamente isso o que Nietzsche criticava sob o nome de ressentimento.
O impacto de situar Deus no lado da vulnerabilidade e do sofrimento injusto não está, naturalmente, em glorificar o sofrimento e a miséria, mas em de protestar profeticamente contra eles; é conferir significado e profundidade divinos à resistência contra o sofrimento injusto, agregar o coeficiente da divina resistência ao sofrimento injusto, motivo pelo qual o sofrimento é a matéria de perigosas lembranças. O grito, o clamor, o rogo que ergue-se da cruz é um grande e divino “não” à injustiça, uma infinita lamentação contra o sofrimento injusto e as vítimas inocentes. Deus está com Jesus na cruz, e ao postar-se com Jesus em vez de com o poder imperial de Roma, Deus posta-se ao lado de um inocente perseguido por repreender os poderes estabelecidos. O nome de Deus é um divino “não” à perseguição, à violência e à vitimização. Semelhantemente, como acabamos de argumentar, a “transcendência” divina tradicional, de cima para baixo, deve ser reformulada de modo a que todos os seus recursos sejam empregados em favor da baixeza e dos desprezados. O efeito de se falar na transcendência de Deus não deve ser o de respaldar e sobrepujar a presença com uma hiper-presença, mas o de perturbar a presença com diferença – permitindo assim que os mais ínfimos alcem-se em divino esplendor.
Nesse modo de ver as coisas – e é essa a posição da teologia fraca, a religião de um anarco-profético-desconstrucionista – a transcendência de “Deus” não quer dizer que Deus eleva-se acima do ser como supra-ser. Ao contrário, Deus arma sua tenda entre seres identificando-se com tudo que o mundo rejeita e deixa para trás. Na verdade, ao invés de se falar em transcendência de Deus, melhor seria falar em in-scendência (incendiária inscendência!) ou “insistência” de Deus no mundo. Em Deus essência e insistência são uma mesma coisa. Com isso quero dizer que Deus se retira da ordem mundana de presença, prestígio e soberania a fim de instalar-se nos bolsões de protesto e de contradição do mundo. Deus pertence ao ar, ao clamor, ao espírito que inspira e aspira, que respira justiça. Deus se instala neste mundo nos recessos formados pelos pequenos, os zés-ninguéns e joões-ninguéns deste mundo – o que em 1 Coríntios Paulo chama de ta me onta. O que estou tentando é fazer com que deixemos de pensar em Deus como a coisa melhor e mais elevada que existe e comecemos a pensar em Deus como o clamor que provoca o que existe, o espectro que assombra o que existe, o espírito que sopra sobre o que existe.
John D. Caputo,
em The weakness of God: a theology of the event
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