Ricardo Gondim
Ouso pensar o mistério. Atrevo-me a nadar em águas sem fronteiras, aventurar-me no oceano infindável em que as afirmações suscitam novas dúvidas. De antemão, valho-me da máxima socrática: “Só sei que nada sei!”. Aproprio-me também do princípio de Tomás de Aquino em sua Suma Teológica: "A respeito de Deus, quando não podemos saber o que ele é, sabemos o que não é".
Reconheço que "teologia é uma linguagem sobre Deus", como bem afirmou Gustavo Gutierrez. Portanto, se teologia é linguagem, será imprecisa, precária e sempre relativa. Ninguém é possuidor da “verdade absoluta” e mesmo que fosse, seria incapaz de traduzi-la, explicá-la ou demonstrá-la com “absoluta exatidão”. Assim, toda a teologia é passível de ser criticada, revisada e aperfeiçoada.
Minha ousadia tem a ver com o conceito teológico da onipotência, tão defendido e tão comumente assumido na fé popular. Desde a República de Platão já era possível encontrar o pressuposto de que Deus é imutável e, óbvio, onipotente. Por onipotência, entende-se perfeição em poder. Portanto, um Deus onipotente é compreendido como um ente que mantém os acontecimentos previstos, realizados e supervisionados de acordo com sua vontade.
Esse conceito de perfeição, que vem da tradição grega, ressalta que um Deus onipotente nunca pode mudar. Qualquer mudança implicaria em uma aceitação de que o estado anterior era melhor ou pior, o que é impossível para a Divindade. Em outras palavras, se Deus alegrar-se é porque antes estava sério. E se alegria é melhor que sisudez, Deus teria melhorado. Impossível! Perdoar, ter misericórdia, alterar destinos, nada disso seria concebível para Deus pois são decisões que alteram a perfeição divina.
Influenciada por esse conceito, a teologia clássica pontifica que Deus é "o poder mais poderoso que se possa imaginar". E esse pressuposto é tão caro aos crentes, que muitos ficam zangados diante de qualquer questionamento. Mas cabe a pergunta: De que jeito é o poder mais poderoso que se possa imaginar? Os mais rápidos no gatilho teológico sacam as armas e respondem: “O poder de tudo controlar, de tudo organizar, de tudo gerenciar”. Para eles, o maior poder concebível seria Deus regulando ou arbitrando sobre os nano detalhes do universo.
Essa ideia sobre Deus parece a mais lógica porque, dentro de elaborações gregas, realmente é inconcebível que Deus continue Deus sem que dirija os eventos tanto do universo visível como invisível. Alguns, contudo, resistem ferozmente que uma onipotência os comande; não admitem um universo encabrestado. Esses preferem se tornar ateus. Pe François Varillon afirma:
Não sejamos superficiais ao analisar a posição desses homens; no fundo, eles julgam mais digno do homem e consequentemente mais verdadeiro preferir um céu vazio ao fantasma de um imperador do mundo, potentado, déspota, dramaturgo supremo, a manobrar as marionetes da tragicomédia humana, fixando petrificando ou curto-circuitando liberdades que, aliás, supõe-se que haja criado.
A presença do mal se transforma em um nó dificílimo de desatar na filosofia e na teologia. Se Deus tem o poder de tudo determinar e tudo gerenciar, como aconteceu o pecado? Existiu o livre arbítrio em algum tempo? Se existiu, duas vontades colidiram. Se pecado é escolher o mal ou o vício, como alguém (até mesmo o primeiro casal) poderia fazer essa escolha sem infringir a vontade onipotente de Deus? No caso de um pecado original, ou Deus se fez de rogado ou intencionou, por detrás dos panos, que acontecesse a primeira transgressão. No exato instante da primeira rebelião, Deus estava no controle?
Caso tenha decidido não interferir nas decisões erradas quando podia fazê-lo, será que Deus tem objetivos posteriores? A sua onipotência fica preservada, mas ele deixa um rastro suspeito. Deus trabalha com armações maquiavélicas, em que os fins justificam os meios? Será que a universalização do sofrimento com tragédias dantescas estão rigorosamente sob seu querer para que o capítulo final da história permaneça glorioso?
Aqui começam os problemas. Se Deus traçou todos os mínimos detalhes da história e tem tudo sob seu mais rígido mando, não só os esboços gerais dos acontecimentos, mas os detalhes estão “pré-ordenados”. Quando um maníaco estupra e mata seis adolescentes, o homicídio não foi só previsto, mas arquitetado pelo Divino. E como poder absoluto não pode admitir detalhes fora do seu governo, as sórdidas minúcias do crime, bem como a macabra execução, teriam que ser não só antecipados, como minimamente determinados por Deus. Criminosos, genocidas, torturadores não passariam de executores finais de uma vontade escondida. Se "soberania" não permite ações dentro de parâmetros largos, então "soberania" especifica cada atitude e micro-gerencia os pormenores das escolhas de Madre Teresa, Pinochet, Gandhi e Idi Amin. A história se resume ao mero desenrolar de uma "vontade ativa" ou "permissiva" de Deus.
Teólogos fundamentalistas escrevem coisas estranhas (não se espante nem ria): “A vontade de Deus era que o criminoso agisse, mas que o fizesse com liberdade”. Vem embutida nesta afirmação um conceito muito caro para o calvinismo: “É possível ser livre e controlado ao mesmo tempo”. Sabe-se lá o que isso significa. Já fui contestado com argumentos do tipo: “A vontade de Deus é que o maligno se sinta livre para praticar a sua malignidade, mas que escolha debaixo da rigorosa vontade de Deus”. A incoerência interna do argumento é tão absurda que não merece ser levada a sério. Entretanto, ela é repetida e comentada como “ortodoxa” em colóquios teológicos. Insisto na pergunta: Como uma pessoa pode agir com liberdade se foi programada e determinada, sem opção de transgredir?
Será que o poder de Deus é sua capacidade de fazer com que os humanos se comportem exatamente como ele quer, enquanto acreditam que são livres? Se esse for o caso, a humanidade vive sob o império do logro. A humanidade é pior do que os golfinhos que se imaginam livres quando fazem estripulias dentro dos aquários e mal percebem que só cumprem os acenos do adestrador. Sim, seríamos piores que os golfinhos. Eles não são dotados de uma racionalidade consciente como os humanos.
Varillon afirmou que “seria radicalmente impossível para mim fiar-me em Deus, abandonar-me a Ele em confiança se nada soubesse sobre a natureza de seu poder. Sim, Deus é todo-poderoso, mas poderoso com que poder?” O poder de Deus é o poder do seu amor.
No caso de haver um controlador, seja lá qual for esse poder, alguns (eu me incluo entre eles) preferem a liberdade à escravidão. Repito as palavras de Varillon: “Não posso afirmar que creio num Deus todo-poderoso, a não ser que tenha a certeza de que se trata de um poder que não ameaça a minha liberdade".
Portanto, “a onipotência de Deus é onipotência de amor”. Novamente concedo a palavra a Varillon:
Entre onipotência e amor todo-poderoso, há uma grande diferença; há literalmente um abismo. O cristão não diz acreditar que Deus é todo-poderoso, diz acreditar em um Deus Pai todo-poderoso. No Credo, a afirmação de Deus e de sua onipotência é pronunciada e compreendida num movimento de confiança e amor, expresso precisamente por essa preposição. Dizer:creio em ti é dizer: sei que teu poder não é um perigo para minha liberdade, mas que ele está, bem ao contrário, a serviço da minha liberdade.
Deus é amor. Seu amor é onipotente. Repito e repetirei um milhão de vezes: Deus tem poder para amar infinita e fielmente, nunca para controlar.
2 comentários:
concordo, você tem razão.
parabens pelo texto, e o ponto de vista muito iteligente.
NOSSA! MUITO BACANA SUA ARGUMENTAÇAO ME INTERESSO MUITO POR FILOSOFIA . E CLARO QUE ESTE BLOGGER ME AJUDARA MUITO ....
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