Em retiro espiritual (1970), Pe François Varillon citou um poema escrito por um russo que estava de passagem por Lima, Peru. O russo viu, nessa cidade, uma moradora de rua que, para se aquecer, se enrolou em jornais que havia encontrado espalhados pelo chão.
Naquela noite, como em muitas outras, seu cobertor era a atualidade do mundo. Sobre seu corpo miserável estavam escritos todos os acontecimentos do mundo, todo o pecado do mundo. Ela estava enrolada, de certo modo, no mal do dia. Sua manta era composta de sofrimento, descaso e injustiça. Aquela desabrigada era metáfora viva de todo o mal que vem impresso nos jornais. A maldade, de certa forma a abrigava da própria inclemência da vida.
Estamos, portanto, em Lima, 1970:
À hora em que morrem os jornais, porque a noite
os torna detritos,
à hora em que o cão, com um resto de comida
entre os dentes, para e vigia,
desconfiado, cada um dos meus passos,
à hora em que despertam todos os vis instintos,
os instintos que, hipocritamente,
se escondem durante o dia,
à hora em que os motoristas de taxi me gritam
“Eh, gringo, queres uma mocinha peruana?
Verás, é chocolate derretido”.
à hora em que já não funcionam as estações de correio
e em que só o telegráfo prossegue sua vigília,
à hora em que um camponês, enrolado em seu poncho,
dormita, encostado a alguém,
imóvel como uma estátua,
para ele totalmente desconhecido,
à hora em que as prostitutas e as musas
tiram maquilagem do rosto,
à hora em que já preparam os detritos de amanhã,
com os seus grandes títulos de primeira página,
à hora em que tudo é visível e invisível,
eu vagueio sem destino e não venho de parte nenhuma,
vagueio fatigado, sozinho, como um cão vadio,
vagueio pelas avenidas noturnas de Lima que se parecem,
então, com um cemitério dos contos.
A rua está toda suja, como de um escarro,
pelo tapete de cascas de laranja,
a rua cheira mal como as latrinas de um imenso estádio.
Mas para, repara.
Uma silhueta humana advinha-se através
de um monte de jornais mortos.
Ali, aninhada e muda; sem se queixar de nada
nem de ninguém,
uma mulher idosa fez um poncho,
um poncho feito de uma notícia sensacional
do dia que passou,
A velha embrulhou-se nele para escapar ao frio,
agasalhou-se na extrema direita e na extrema esquerda,
até aos olhos.
A extrema direita e a extrema esquerda, para a mulher,
são a mesma coisa.
Para ela, a única coisa importante, é ter menos frio.
A mulher idosa embrulhou-se nos escândalos e nas intrigas
e nos truques do esporte, até rente ao cháo.
Comparados com as pernas famosas da manequim inglesa,
Twiggy, os seus pés descalços levam a melhor.
Os automóveis, os submarinos, os foguetes,
esmagam-na com o seu peso
e fazem-na sumir-se no asfalto da rua.
As corridas, os iates, os strip-teases e os banqueiros
pesam sobre os seus ombros de camponesa.
Sobre as suas costas, Rockefeller, Onassis, Dupont,
com o seu sorriso bovino,
saboreiam o seu cocktail.
Sobre o seu corpo, todo entorpecido pelo frio,
Mao e Nixon jogam, prazenteiros,
uma partida de pingue-pongue.
E a pálida claridade do banco espreita, dolorosamente,
por detrás da montra, como da coluna vertebral
desta velhinha ressuma, ainda quente,
o sangue do Vietnam.
Sob imundície e a vergonha desta feira do mundo,
sem força para compreender todo este lodo,
a velhinha olha, como uma lama em apuros,
antiga índia, virgem de dor, mãe da humanidade.
Verga-se sob o peso das suas mentiras,
a tatuagem violenta do seu título, fere-a.
Mas ela é como uma estátua viva,
a estátua da verdade do mundo que repousa
sob o montão de mentiras.
Ó claridade pálida do banco, tu iluminas o seu seio fatigado.
E tu, lama da montra, liberta-a
desta imundície dourada que a cobre,
leva-a contigo para a montanha da salvação.
Eu, o representante de um grande país,
inclino, silenciosamente, a minha cabeça,
como uma criança perdida,
diante desse rosto doloroso,
do seu rosto cor de cobre, sulcado de rugas.
Porque muito no fundo desta mulher idosa esconde-se
ciosamente, esconde-se,
respirando em segredo, o país maior do mundo,
a alma humana.
“Eh, gringo, não queres uma pequena peruana?”
grita-me ele, novamente, com um assobio.
Mas eu, fico ali, sem me mexer, sem poder mexer-me.
Não posso explicar ao motorista de taxi
que a minha peruana, já a encontrei.
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