Paulo Brabo - A Bacia das Almas
Nos Estados Unidos os cristãos evangélicos são freqüentemente associados a uma reputação de obtusidade. Não são conhecidos, digamos assim, pelo seu brilhantismo ou independência intelectual. Trata-se em geral de gente simplória e pouco sofisticada, direitona e tradicional, que vota no George W. Bush, que quer ver o criacionismo sendo ensinado como ciência nas escolas e lamenta balançando a cabeça a vida desregrada e as idéias de liberais yankees como Clinton (ele e ela). São republicanos, freqüentam alguma igrejinha branca todos os domingos, vivem no Cinturão da Bíblia no interior do país a fim de manter-se a salvo dos pecados do mar.
Mas não se engane: são gente bem-intencionada e correta, que defende a validade permanente dos mandamentos, todos os dez, inclusive as partes que falam em não roubar, não adulterar e não dar falso testemunho.
* * *
Ignoro se no Brasil os evangélicos já adquiriram, tendo em vista a sua recém-adquirida visibilidade, alguma reputação tão unânime. Penso que para a vasta maioria dos brasileiros os crentes são aqueles malas-sem-alça, hare-krishnas de terno e gravata, que poluem as ondas do rádio com músicas que pedem que o rio flua e sermões que pedem que o fogo caia.
Politicamente falando, apesar do apadrinhamento dos missionários norte-americanos, muitos dos mais sonoros porta-vozes evangélicos brasileiros pendem sensivelmente (por motivos que espero poder analisar em outra ocasião) para a esquerda – porém a tendência não chega a ser unânime, como atestam os evangélicos direitões que profetizam o apocalipse comunista que desencadeará inexoravelmente o governo Lula (catástrofe que pensam poder evitar enchendo a caixa de entrada do meu email).
Permita-me associar os evangélicos brasileiros à impunidade.
Que há mais evangélicos entre as camadas mais pobres da sociedade é também fato conhecido, embora não seja dado especialmente notável, já que no Brasil a distribuição de renda é tão surrealmente desigual que qualquer fatia fortuita da sociedade, de ornitólogos a corintianos, estará fadada a conter mais pobres do que ricos.
No fim das contas, nem especialmente obtusos nem especialmente brilhantes; nem especialmente esquerdistas nem especialmente direitistas; nem especialmente pobres, nem especialmente ricos. Os evangélicos brasileiros são uma amostra aguardando classificação.
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Até agora.
Requeiro o privilégio de ser o primeiro a associar os evangélicos brasileiros àquilo que lhes é, histórica e ideologicamente, de direito: a impunidade.
Se os evangélicos norte-americanos cultivam uma relação compulsiva e para nós incompreensível com a correção e a integridade, nossa ambição ética é oposta: queremos ser incessantemente perdoados pelo que a ninguém se perdoa. Exigimos imunidade completa, anistia total e irrestrita pelas nossas patifarias, que são muitas. Queremos errar com gosto, e exigimos impunidade.
Deveria ser para nós ironia descomunal que a Reforma Protestante tenha se originado da luta de Lutero contra abusos como as indulgências católicas, conveniente sistema de créditos que permitia que o cidadão adquirisse – com dinheiro, naturalmente – perdão para as faltas que estava ainda para cometer. É irônico porque no Brasil o sistema evangélico de créditos é mais avançado: o perdão é liberado e distribuído em regime just-in-time, à medida que vamos pisando deliberadamente na bola.
Não temos como errar.
Graças a essa sofisticação teológica, refinada em solo tupiniquim, nossos evangélicos sentem-se inteiramente à vontade para defraudar, roubar, espoliar, extorquir e gatunar. Sabemo-nos livres para violar todos os dez mandamentos e aquele novo também; como o perdão flui incessantemente, não temos – mesmo que queiramos – como errar.
Meu amado Shayllon Marinho, quando era ainda atraente e agnóstico – ou seja, antes de abraçar Jesus e engordar como punição – encontrou nessa monumental patifaria evangélica um tremendo obstáculo à sua conversão. Mandou-me uma vez essas linhas indignadas:
Os evangélicos estão tão atolados no pecado e na permissividade quanto eu. Mas se justificam pela salvação. Tipo: eu posso pecar, mas minha barra é limpa. Posso [fazer tal coisa], porque eu estou salvo, e você não…
Como agente de dentro, reconheci imediatamente a eficácia e a difusão interna desse raciocínio. A teologia neo-evangélica da impunidade cobre com sua credencial todas as esferas da atividade e permeia todo o espectro de requerimentos éticos. Onde há um de nós, ninguém está seguro.
Dito de outra maneira, minha gente, a verdade é que muitos evangélicos – um número colossal deles – em todos os níveis e posições, em todas as possíveis nuanças entre a sutileza e o descaramento, são trapaceiros e ladrões – e talvez não por outro motivo além de serem evangélicos, e sentirem-se assim perdoados de antemão em suas falcatruas.
Prefiro não inquirir nomes, escândalos ou litígios específicos, mas creia-me quando digo que os há. Falo de gente muito respeitável que estabelece uma reputação como representante credenciado de Deus e pilar da comunidade e desaparece anos depois com o dinheiro que arrecadou de inúmeros outros para fins outros, deixando atrás de si incontáveis prejuízos, rancores e contas para pagar. Falo de recursos desviados, de falsidade ideológica, de empréstimos esquecidos, de transgressores transferidos para localidades distantes a fim de abafar escândalos sempre mais financeiros (e portanto aparentemente mais atraentes) do que sexuais. Falo de casos abundantes, de impensáveis reincidências, de somas assombrosas. Falo de gente que tem certeza da salvação. Falo de impunidade.
Onde há um de nós, ninguém está seguro.
Num país em que a ladroagem ameaça dos dois lados de todas as portas não deveria ser surpresa encontrá-la entre essa raça tão singular de pecadores que é a dos cristãos evangélicos. A diferença não está em se tratar de gente que faz uso de uma imagem de pureza para aproveitar-se da boa fé alheia (conduta esperada em se tratando de ladrões), mas em ser gente que se julga inocente e baterá o pé pela impunidade neste tribunal e no próximo, e evitará se puder os dois. Falo de lobos que se acreditam ovelhas e por isso abrem mão até mesmo do disfarce.
E, pense comigo, quem se protege na religião para deitar e rolar em causa própria não tem como ser melhor do que quem se abraça a uma carga explosiva e morre pelo que crê ser o avanço da sua. Ambos matam, mas haverá naquele dia mais paciência para este do que para aquele.
Nesse Brasil nosso em que a impunidade é catalisador infalível nas veias de todas as instituições (mesmo entre gente de somenos como os católicos e pagãos), cabe aos evangélicos o duvidoso mérito de termos criado uma justificação teológica e totalmente eficaz para a patifaria: a conivência de Deus.
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