Jacques Ellul
De um único verbo, crer, originam-se dois substantivos que  representam ações radicalmente opostas: crença e fé. Porém quando quero  usar uma forma verbal para expressar a minha fé tenho ainda de usar crer, a não ser que escolha uma fórmula ainda pior, ter fé.
A crença provê respostas a nossas perguntas, a fé nunca o faz. Cremos  para encontrar segurança, solução, uma resposta para os nossos  questionamentos. As pessoas creem para desenvolverem para si um sistema  de crenças. A fé (a fé bíblica) é completamente diferente. O propósito  da revelação é fazer com que ouçamos as perguntas, e não suprir-nos com  explicações.
A fé, em primeira instância, é ouvir, como Barth tão frequentemente  nos faz lembrar. A crença fala e fala, atola-se em palavras, interpola  os deuses, toma a iniciativa. A fé requer um posicionamento inteiramente  oposto: a fé espera, permanece atenta, colhe sinais, sabe o que fazer  das parábolas mais delicadas; ela ouve pacientemente Toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham porque satisfazem a nossa necessidade de religião.o  silêncio até que o silêncio seja preenchido pelo que ela toma sendo a  inquestionável palavra de Deus, palavra da qual se apropria. 
 A fé isola o indivíduo; a crença, (qualquer que seja, inclusive a  cristã) ajunta pessoas. Na crença nos vemos unidos a outros na mesma  corrente institucional, todos orientados em direção ao mesmo objeto de  crença, compartilhando das mesmas ideias, seguindo os mesmos rituais,  arrolados na mesma organização, quer seja religiosa ou social, falando o   mesmo dialeto. A crença age como apaziguadora na sociedade, ela é a  chave para o consenso que buscamos, o definitivo e há muito proclamado  como necessário elemento essencial da vida comunal. A fé sempre trabalha  de maneira exatamente oposta. A fé individualiza; ela é sempre e  exclusivamente uma questão pessoal. Fé é o relacionamento pessoal com um  Deus que se revela como uma pessoa. Esse Deus singulariza a pessoa,  coloca-a à parte, e confere a cada pessoa uma identidade que não é  comparável à de nenhuma outra. A pessoa que ouve a palavra de Deus é a  única a ouvi-la; neste ato ela está separada das outras pessoas, e nele  ela torna-se única – A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida.simplesmente  porque o elo que liga esse indivíduo a Deus é único, exclusivo e  inviolável. Trata-se de um relacionamento singular com um Deus único e  absolutamente incomparável. 
 Deus particulariza, singulariza a pessoa a quem ele diz “eu te chamo  pelo teu nome” (Isaías 45.4). A fé separa cada pessoa das demais e faz  única cada uma delas. Na Bíblia a palavra santo significa separado, à  parte. Ser santo é ser separado de todos os outros, é ser único em razão  da tarefa que não pode ser desempenhada por nenhuma outra pessoa,  tarefa que se recebe pela fé.
 A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A fé não é o  oposto da dúvida, a crença é. Os soldados da crença agem sem  questionamento de acordo com a lei e os mandamentos. São inflexíveis nas  suas convicções, não toleram a qualquer desvio. Na articulação de sua  crença eles imprimem rigor e absolutismo ao extremo. Refinam  incessantemente a expressão da sua crença e buscam dar a ela uma  formulação intelectual específica num sistema tão coerente e completo  quanto possível. Insistem na completa ortodoxia. Codificam rigidamente  modos de pensar e de agir. 
 Os  crentes encontram encorajamento e certeza na presença de outros, e têm o  seu vazio existencial preenchido pela vida comunitária. 
Isso leva  a um elevado grau de eficiência; o crente é uma pessoa que faz o que  precisa ser feito, mas toda a sua atividade é, no fundo, vazia. Os  crentes tem uma realidade própria tão pequena que só são capazes de  viver e expressar essa realidade dentro de uma unidade convencionalmente  estabelecida. São gente de ajuntamentos. Os crentes encontram  encorajamento e certeza na presença de outros, dependem da certeza de  que esses outros realmente acreditam, e assim têm o seu vazio  existencial preenchido pela vida comunitária. Multiplicar o número de  liturgias, compromissos e atividades dá aos crentes a completa  satisfação; rodeados por isso tudo eles não tem necessidade de  questionar a verdade ou realidade da sua própria crença: a atividade os  mantém ocupados.
 Nesse cenário a diversidade de crenças torna-se intolerável. A dúvida  e as incertezas são radicalmente destrutivas para a crença, e em razão  disso a crença não pode tolerá-las. A crença é inimiga da diversidade. A  diversidade é sempre uma fonte de novos questionamentos e propicia um  ambiente para a autocrítica. Diante da diversidade corremos o risco de  nos depararmos outra vez com a  dúvida. Para evitar esse inimigo a  crença precisa ser e é de fato rapidamente transformada em senhas, ritos  e ortodoxia.
 “Eu creio; ajuda-me na minha incredulidade” (Marcos 9.24) são as  palavras que resumem o que é a fé. A fé me constrange acima de tudo a  avaliar o quanto não vivo pela fé – o quão raramente a fé enche a minha  vida. A fé coloca à prova cada elemento da minha vida e do meu contexto  social; não poupa nada nem ninguém. Ela é implacável em me levar a  questionar todas as minhas convicções: cada uma das minhas moralidades,  crenças e posições políticas. A fé me impede de atribuir significado  definitivo a qualquer área da atividade humana. Ela me desprende e me  livra do dinheiro, da família, do meu emprego e da minha capacidade  intelectual. 
 A crença é confortadora. 
Ela  é o caminho mais certo para me levar a admitir que a única coisa que  sei é que nada sei. A fé não deixa nada intacto. A única coisa que a fé  me traz é o reconhecimento da minha impotência, incapacidade e  inadequação. Ela faz com que eu me depare com minha condição de  incompleto, e desmascara minha incredulidade (naturalmente a fé é a arma  mais certeira e letal contra as crenças em geral).
 A crença é confortadora. A pessoa que vive no mundo da crença  sente-se segura. Ao contrário, a fé continuamente nos coloca no fio da  navalha. Embora saiba que Deus é Pai, ela nunca minimiza o seu poder.  “Quem é este, que até mesmo o vento e o mar obedecem?” (Marcos 4.41).  Essa é uma pergunta da fé. Para a crença as coisas são simples: Deus é  Todo-Poderoso. Com a crença nós normalizamos Deus, para que possamos nos  sentir confortáveis diante do seu poder. Apenas a fé é capaz de  apreciar a imensidão de Deus e a sua verdadeira natureza. 
 A dúvida, que constitui parte integral da fé, diz respeito a mim  mesmo; não diz respeito à revelação de Deus ou ao seu amor nem à  presença de Jesus Cristo. Trata-se da dúvida a respeito da efetividade,  até mesmo da legitimidade, daquilo que faço e a respeito das forças a  que me submeto na minha igreja e na sociedade. Além disso, a fé coloca a  si mesma à prova. Se discirno o tumulto da fé dentro de mim, tenho de  adotar como primeira regra não enganar a mim mesmo, não me deixando  abandonar à crença indiscriminadamente. Passarei a ter de sujeitar  minhas crenças a uma crítica rigorosa. Terei de dar ouvidos a todas as  negações e ataques dirigidos a elas, de modo que possa compreender o  quão é sólido o objeto da minha fé. A fé não apoia meias-verdades e  meias-certezas. Ela me obriga a enfrentar o fato de que não sou nada, e  ao fazer isso recebo todas as coisas de presente.
 A crença está associada a coisas, a realidades e a comportamentos que  são elevados ao status de valor definitivo, a ponto de serem  merecedores de que se morra por eles. A crença veste realidades humanas  finitas para que se apresentem como sendo realidades definitivas,  absolutas e fundamentais. Pertencer à Cristandade e a uma das suas igrejas é o principal obstáculo para alguém tornar-se um cristão verdadeiro.Através  da crença tudo que pertence ao âmbito da Promessa, da Palavra de Deus e  do Reino é transformado em efeito colateral, em palavras doces e  piedosas, em meios de tornar a vida mais fácil e num processo de  auto-justificação.
 A fé trabalha de forma oposta. Ela reconhece o Definitivo em sua  verdade incontestável, e assim atribui pouca importância a qualquer  coisa que se apresente como substituto desse Definitivo. Não se trata de  olhar para uma fonte externa de uma realidade definitiva; o Reino dos  céus está agora entre e ou dentro de vocês. A partir de agora você é que  constitui o reino. A fé é a exigência de que encarnemos o Reino de Deus  agora, neste mundo e nesta época.
 Ninguém jamais progride da crença para a fé, muito embora a fé em  muitos, com muita frequência, degenere em crença. Você não pode chegar à  fé por meio de qualquer religião ou crença antiga, através de alguma  vaga exaltação espiritual ou de emoções estéticas. De um ponto de vista  cristão, crer não é melhor do que não crer; ter uma religião não é  melhor do que não ter. A crença é uma estrada que não leva à fé. Não é  possível transformar uma convicção pessoal a respeito do valor de  rituais num ato de postura solitária diante de Deus. A implicação disso é  verdadeira: toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham  porque satisfazem a nossa necessidade de religião. Elas induzem a  escolhas espirituais que não substituem a fé, impedindo-nos de  descobrir, de ouvir e aceitar a fé revelada em Jesus Cristo.
 Kierkegaard defende a ideia de que, para uma pessoa criada com toda a  cultura do Natal, que teve todas as suas pequenas necessidades  espirituais satisfeitas pela igreja, é mais difícil receber o choque da  revelação, descobrir o Único, e entrar na noite escura da alma, do que  para aquele que não fez outra coisa na vida a não ser buscar  continuamente sem nunca chegar a uma resposta satisfatória. Pertencer à  Cristandade e a uma das suas igrejas é o principal obstáculo para alguém  tornar-se um cristão verdadeiro. Não existe caminho que leve de um  pouquinho de religião (de qualquer tipo) a um pouquinho mais e  finalmente à fé. A fé destrói toda a religião e tudo que entendemos como  espiritual. Por outro lado, a passagem da fé para a crença é possível e  uma ameaça constante. É o caminho do retrocesso ao qual a igreja e vida  cristã estão sempre sujeitos. A fé está constantemente degenerando em  múltiplas crenças. Nenhum termo expressa melhor essa mudança  imperceptível do que “ter fé”. Quando nós tomamos posse da fé, quando  alegamos sermos proprietários dela, naturalmente estamos pensando que  podemos dispor dela do modo que desejarmos. A única coisa que temos o  direito de dizer é “a fé me tem”. Todo o resto é mera crença.
 Fé não é nem crença nem credulidade. Não é uma aquisição razoável nem  um feito intelectual; é mais a conjunção de uma decisão definitiva com  uma revelação, e convida-me a efetuar hoje a encarnação da realidade  última, o Reino de Deus presente entre nós. Sou intimado por uma Palavra  que é eterna, universal e pessoal aqui e agora. Aceitar a intimação.  Dispor-se a agir de forma responsável, entrando numa aventura ilógica,  sem saber sua origem nem o seu fim. Assim é a fé.
 A apologética tenta provar que o cristianismo responde às perguntas  da humanidade, que ele é verdadeiro e superior às outras religiões. Fica  evidente que isso limita nossa discussão ao nível religioso. Somos  capazes de demonstrar que o cristianismo pode conduzir um debate  razoável. Ocorre porém que esses debates entre intelectuais são  totalmente estéreis; um jamais chega a convencer o outro. Nenhum  apologeta chegou a trazer um incrédulo para a fé, Se você crê em Deus para ser protegido, coberto, curado ou salvo, então não é fé, porque a fé é gratuita.mesmo  os que sabiam que haviam vencido a retórica do adversário. A abordagem  meramente lógica e intelectualista leva a um beco sem saída. O intelecto  não é capaz de invocar ou demonstrar o caminho da fé.
 A crença é um refúgio e um escape da realidade. Em nossa busca  natural por proteção nos agarramos a ela como uma garantia ou uma  apólice de seguros. Radicalmente oposta à crença é a fé. Fé é assumir  riscos, deixar para trás segurança e tranquilidade, desprezar garantias:  é pisar, como o discípulo, para fora do barco no mar da Galileia. Se  vivemos pela fé, não há necessidade de implorar que ele nos salve do  perigo. Torna-se suficiente saber que ele está ali, mesmo que o perigo  se mostre mortal; o que quer que o amor de Deus queira fazer ou esteja  fazendo em nós será feito, não importa o quê.
 Por que crer? Usando “crer” no sentido de “participar da fé”, não  temos nenhum resposta. Acreditar porquê? Com vistas a quê? Para realizar  o quê? Para conseguir o quê? São questões sem sentido. Cremos por razão  nenhuma. Não existe razão objetiva para a fé; a fé tem de ser vivida. A  fé não tem origem ou objetivo. No momento que admite qualquer objetivo  ela deixa de ser fé. Se você crê em Deus para ser protegido, coberto,  curado ou salvo, então não é fé, porque a fé é gratuita. Isso vai  parecer chocante, especialmente para os protestantes, que falaram tanto  de salvação pela fé, da fé como condição da salvação, que chegaram a  dizer “você crê, por isso será salvo”. Mas temos de ficar voltando à fé e  a sua gratuidade. Se Deus ama e salva a humanidade sem pedir preço  algum, ele quer a contrapartida de ser crido e amado sem propósito  algum; Deus quer ser crido e amado sem que seja por mero interesse  pessoal, simplesmente por nada. 
 A fé é o ponto de ruptura, não com os nossos companheiros humanos, mas com as religiões. 
Isso  é escandaloso, e ainda assim tão fácil de compreender se considerarmos o  amor. No momento em que um homem e uma mulher se amam por alguma razão  concreta, qualquer que seja, dinheiro, prestígio, beleza ou posição, o  amor deixa de ser. O amor é sem causa e sem interesses pessoais ; o amor  é sem razão.
 A fé é uma constante ação recíproca; ela nunca fica estagnada ou se  acomoda. Não se pode encarnar a fé de um modo estático e definitivo. A  fé é um perene novo ponto crítico. A fé portanto é a contínua presença  da tentação e uma visão cada vez mais clara da realidade. Ela implica na  crítica à religião cristã, às missões civilizadoras, aos códigos morais  cristãos impostos de fora; crítica a uma verdade cristã que exclua  reivindicações sobre si de qualquer outra área da cultura humana. A fé é  o ponto de ruptura, não com os nossos companheiros humanos, mas com as  religiões. A fé é levada a prosseguir em criticar, julgar e radicalmente  rejeitar todas as reivindicações religiosas humanas. Precisamos ser  cautelosos nesse ponto. Não são pessoas que estão sendo julgadas ou  criticadas aqui; a vontade de poder das pessoas e a expressão disso na  forma de religião é que é criticada, julgada e rejeitada. Mas a crítica  da religião feita pela fé pode estar enraizada apenas na sua crítica de  si mesma.
 A fé me leva a tomar parte de tudo, e ao mesmo tempo me mostra tudo  sob uma luz que não é a razão, a experiência ou o senso comum. Não se  trata de uma operação intelectual, é sim uma atitude existencial. A fé  traz a luz a nova pessoa manifestada em amor e lucidez.
 Hoje em dia a fé dos cristãos na igreja se desencaminhou. A sua  obsessão com o conteúdo da sua fé (teólogos discutindo termos técnicos)  ao invés da paixão pelo movimento e pela vida da fé, acabou  desencadeando a nossa crise mundial. Mas o imutável permanece imutável. O  Último, o Não-Condicionado, o Totalmente Outro não mudou. A fé é nossa  responsabilidade de fazer com que o Transcendente, o Não-Condicionado, o  Totalmente Outro Ser, torne-se uma realidade ativa dia após dia em  nosso contexto, hoje onde quer que estivermos. A fé só move montanhas  quando fala ao onipotente criador – quando me sujeito a ouvir a palavra  da fé.
 Postado originalmente em 26 de março de 2005
 Extraído de Fé Viva: Crença e Dúvida num Mundo Perigoso. San Francisco: Harper and Row, Publishers, 1983. 
 Tradução: Paulo Brabo
Revisão: L. Ivan Volcov
Revisão: L. Ivan Volcov
 

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