sexta-feira, 27 de abril de 2012

A passagem do tempo e o mistério da identidade

Paulo Brabo - A Bacia das Almas

Todos os recursos expressivos de Deus são literários. No princípio era o Verbo, ou dito com outro vocabulário, Era uma vez.
Quando quer surpreender, instigar e iluminar – e ele parece querer incessantemente surpreender, instigar e iluminar – Deus recorre a precisamente os mesmos truques de que os contadores de histórias tem dependido desde antes que ocorresse ao primeiro a idéia de registrar um argumento por escrito.
A multidão de histórias verdadeiras e inventadas que nos sitiam não deve nos impedir de observar que são os mesmos truques fundamentais que impulsionam e sustentam cada narrativa independente. Rigorosamente falando, o repertório de recursos expressivos que Deus e escritores têm em comum pode ser reduzido a apenas dois itens: a passagem do tempo e a questão da identidade. Nesse breve inventário estão compreendidos toda a literatura e todo o método de Deus.
A passagem do tempo não é meramente o artifício de encadeamento que possibilita o fluxo da narrativa; não é meramente o rio em cuja corrente a história pode fluir. Numa história, inclusive na nossa, o tempo é a varinha de condão por excelência, o elemento mágico que possibilita cada milagre, cada conclusão, cada reviravolta. A passagem do tempo pode transformar o patinho feio em cisne belíssimo, o Dr. Jekyll em Mr. Hyde, o venturoso Jó num Jó esmagado pelo rancor e, pelo mesmo recurso, num Jó que volta a rir sozinho, inconcebivelmente feliz da vida.
Graças ao simplicíssimo truque da passagem do tempo, todos os milagres e todas as histórias são concebíveis. Deus não precisa ser onipotente, basta que o tempo continue a fluir: para o tempo nada é impossível.
Para o tempo nada é impossível.
É o toque mágico e suficiente da passagem do tempo que pode transformar o marinheiro iletrado Edmund Dantès, de sua cela imunda no Castelo de If, no rico e articulado Conde de Monte Cristo, inteiramente livre sob o sol de Marselha. Esse mais essencial dos truques literários dá forma (por contraste) aos infernos de Kafka, reverte as lealdades em Otelo, reconcilia Darth Vader e Luke Skywalker, reaproxima Esaú de Jacó e reúne finalmente as duas irmãs nos últimos quadros de A Cor Púrpura. O tempo é o pai da reviravolta, que é a razão de ser da história.
Não se deixe portanto enganar por batalhas, bilhetes, traições, chantagens, desencontros, promessas, poções, profecias, rompimentos, jornadas, dragões ou labirintos; esses são na história meros incidentes (essencialmente intercambiáveis) destinados a mascarar o essencial: que é a passagem do tempo que patrocina o milagre e fabrica a reviravolta.
Deus usa, descaradamente, o recurso da passagem do tempo para nos surpreender, instigar e iluminar. O tempo é o fazedor de milagres, o professor e o carrasco por excelência; é o que nos restaura e converte e exaure e revigora e transfigura e justifica e por fim, com um exagero canastrão, mata. O tempo é a matéria-prima do assombro, a raiz da concatenação. É o truque literário mais antigo de todos, que faz inevitavelmente o jovem se perguntar quem é o velho que está olhando para ele de dentro do espelho.
Com a passagem do tempo, vemos arruinado o que pensávamos ser inabalável, e restaurado o que pensávamos estar perdido para sempre. A passagem do tempo imbui significado no que nos parecia no primeiro momento casual; instila a esperança e nega-a terrivelmente e, terrivelmente, restaura-a. Em sua crueza, o tempo nos diz sem rodeios que o Brabo tem quase quarenta anos e ainda não se casou, que os cristãos aguardam pela segunda vinda do Messias de Davi por mais tempo que os descendentes de Davi tiveram de aguardar a primeira, que o cenário da nossa infância – que deveria por direito ser eterno – está irrecuperavelmente perdido e que as mais atordoantes novidades destinam-se a ser recordações de velhinhos. A passagem do tempo transforma amigos em inimigos, inimigos em amigos, cria incontáveis motivos e chaves e gatilhos que poderemos talvez reconhecer quando reaparecerem na história; faz-nos quebrar sensatamente terríveis promessas que fizemos a nós mesmos, deixa-nos encontrar gratidão na mais horrenda ausência e beleza onde só parecia haver dor. Transforma homens notáveis em monstros, bandidos em heróis; introduz um novo personagem quando nosso enredo parecia ter encontrado um beco sem saída, ou torna querido aliado o mais incompatível dos conhecidos de longa data. Com uma cadência sem pressa de faquir, faz com que acabemos reavaliando nossa visão e nossa sentença sobre Michael Jackson, sobre Hitler, sobre Lutero, sobre Jesus, sobre Deus, sobre o vizinho do apartamento ao lado, sobre o amigo de infância, sobre nós mesmos.
E esse momento final de reavaliação ou descoberta diz respeito ao segundo recurso literário por excelência, aquele que explora o problema e as possibilidades da identidade. Todas as histórias são bailes de máscaras, girando de alguma forma ao redor da nossa ignorância e da eventual descoberta de quem realmente somos e de com quem realmente estamos falando. A questão da identidade, juntamente com a passagem do tempo, é engrenagem essencial de todas as histórias que a imaginação humana já concebeu ou – pior – experimentou.
De Chapeuzinho Vermelho (“Para que esses olhos tão grandes?”) a O Sexto Sentido (“Eu vejo pessoas mortas” “Quando? Nos seus sonhos?” “Não. O tempo todo”), o eixo mais fundamental de toda narrativa é a jornada de autodescoberta do protagonista e sua descoberta da natureza última do universo – sua identidade e a identidade do mundo – questões que com freqüência são resolvidas por uma mesma e formidável resposta.
A questão da identidade pode naturalmente ser explorada em múltiplos níveis. Em Agatha Christie, o jogo limita-se à descoberta da identidade do assassino; em A Conferência dos Pássaros, de Farid al-Din Attar, a busca é pela identidade da Divindade, e a resposta está em sua relação com o indivíduo. O problema pode ser ainda determinar qual é a identidade do benfeitor, qual é minha identidade em relação ao meu antagonista (Darth Vader para Luke Skywalker: “Eu sou seu pai”), ou qual se mostrará o caráter do herói diante da adversidade. A história existe, primordialmente, para definir quem -é o herói-
somos
em relação aos outros e quem os outros são em relação a ele nós.
Quando descobrir quem é Deus o homem saberá quem é e o que deve fazer.
Os livros sagrados de todas as culturas se propõem, cada um à sua maneira, a assinalar a verdadeira identidade do homem, ou seja, sua verdadeira relação com o mundo. A Bíblia escolhe fazê-lo pelo método lateral da narrativa: o pressuposto dos escritores bíblicos é que a identidade do homem ficará clara apenas mediante a revelação – isto é, o desmascaramento da identidade – de Deus no mundo real. Quando descobrir quem é Deus, é a tônica da narrativa bíblica, o homem saberá quem é e o que deve fazer (“Diga-me o seu nome”, exige Jacó do homem com quem está lutando na margem do ribeirão Jaboque. O homem fornece a Jacó uma nova identidade, Israel, – “aquele que luta com Deus” – revelando ao mesmo tempo a sua).
Mas sendo nós mesmos personagens dessa história em andamento, o enredo está longe de sossegar num desfecho. Ainda vemos tanto a nós mesmos quanto Deus “como que por um espelho” – isto é, ofuscados por vertiginosos incidentes dramáticos que não saberemos talvez interpretar e incessantemente despistados pelos truques baratos do roteirista. O baile de máscaras ainda não terminou, e a questão da nossa identidade e da identidade divina são mistérios pendentes à espera de um desenlace. O ensino de Jesus, em particular, fornece indícios de que na cena final o problema da identidade merecerá uma resposta incomum: “quem é o meu próximo?”; “quando o fizestes a qualquer um destes pequeninos, a mim o fizestes”; “quem vê a mim vê ao Pai” – e assim por diante.
“Você sabe com quem está falando?” talvez seja a última pergunta a receber uma resposta.
* * *
Todos os truques de Deus para falar conosco são literários, e resumem-se no fim das contas a dois: a passagem do tempo e os desencontros da identidade.
Perfeito emblema da utilização coordenada desses recursos está na história de José, filho de Jacó (Gênesis 37-47). Ao contrário de seus antepassados, que jantaram com Deus, passearam, lutaram e assinaram acordos com ele, José teve de encontrar Deus na face terrível, indistinta e fluida da História. Para falar com ele, Deus provoca-o com a questão da identidade – quem é realmente José? – enchendo-o de sonhos premonitórios que só farão verdadeiro sentido muito tempo depois. A narrativa em si é impulsionada pela mágica poderosa da passagem do tempo, que tudo permite: José é um pastorzinho mimado entre irmãos que o odeiam, depois mercadoria numa caravana de ismaelistas, depois ajudante de confiança do homem de quem é escravo, depois prisioneiro entre estrangeiros hostis, depois intérprete dos sonhos do faraó, depois seu braço direito, depois salvador da civilização, depois autoridade diante da qual dobram-se irmãos que o veneram sem saber, depois salvador de sua própria família.
É apenas ao final desse fluxo que fica definitivamente estabelecida a verdadeira identidade de José perante os outros e perante si mesmo. Para aumentar o impacto dessa revelação o roteirista faz com que no Egito, a que os filhos de Jacó vão como último recurso em busca de comida, o régio José reconheça seus irmãos, mas não seja reconhecido por eles. José, ao fim da sua jornada, sabe quem é e o que representa para os outros – conhece sua identidade1 – mas seus irmãos não sabem quem são e tampouco conhecem sua relação com quem estão falando. Magnânimo, José escolhe repartir sua nova identidade de forma a acolher, salvar e restaurar sua família. E finalmente, numa reviravolta adicional, José sabe reconhecer, nos incidentes aparentemente arbitrários que o levaram àquela posição, a identidade generosa e a mão oculta e redentora do próprio Deus: “Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do Egito. Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida por um grande livramento” (Gênesis 45:8,7).
Cabe supor que Deus esteja falando incessantemente conosco, e esteja fazendo isso através dos velhos recursos literários da passagem do tempo e das máscaras da identidade. Não estamos naturalmente entendendo o que ele está querendo dizer, mas essa ignorância faz aparentemente parte integrante de todo roteiro; se tudo der certo, não seremos prejudicados demais por essa ignorância, nem será ela permanente.
Somos a narração em primeira pessoa de uma história que aguarda em tremente expectativa uma reviravolta. A passagem do tempo, entre os presentes de sua liberalidade, acabará talvez resolvendo o mistério da nossa identidade.
1 O Conde de Monte Cristo de Dumas é, naturalmente, uma reelaboração da história de José, dependendo dos mesmos recursos da passagem do tempo e recorrendo às mesmas máscaras de identidade. Quem é de fato Edmund Dantès: um marinheiro ingênuo de dezenove anos, um prisioneiro sem perspectivas ou um nobre rico mas definido pelos seus rancores? Diante de quem o Conde de Monte Cristo baixará a sua máscara?

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