Paulo Brabo - A Bacia das Almas
Todos os recursos expressivos de Deus são literários. No princípio era o Verbo, ou dito com outro vocabulário, Era uma vez.
Quando quer surpreender, instigar e iluminar – e ele parece querer
incessantemente surpreender, instigar e iluminar – Deus recorre a
precisamente os mesmos truques de que os contadores de histórias tem
dependido desde antes que ocorresse ao primeiro a idéia de registrar um
argumento por escrito.
A multidão de histórias verdadeiras e inventadas que nos sitiam não
deve nos impedir de observar que são os mesmos truques fundamentais que
impulsionam e sustentam cada narrativa independente. Rigorosamente
falando, o repertório de recursos expressivos que Deus e escritores têm
em comum pode ser reduzido a apenas dois itens: a passagem do tempo e a questão da identidade. Nesse breve inventário estão compreendidos toda a literatura e todo o método de Deus.
A passagem do tempo não é meramente o artifício de
encadeamento que possibilita o fluxo da narrativa; não é meramente o rio
em cuja corrente a história pode fluir. Numa história, inclusive na
nossa, o tempo é a varinha de condão por excelência, o elemento mágico
que possibilita cada milagre, cada conclusão, cada reviravolta. A
passagem do tempo pode transformar o patinho feio em cisne belíssimo, o
Dr. Jekyll em Mr. Hyde, o venturoso Jó num Jó esmagado pelo rancor e,
pelo mesmo recurso, num Jó que volta a rir sozinho, inconcebivelmente
feliz da vida.
Graças ao simplicíssimo truque da passagem do tempo, todos os
milagres e todas as histórias são concebíveis. Deus não precisa ser
onipotente, basta que o tempo continue a fluir: para o tempo nada é
impossível.
Para o tempo nada é impossível.
É o toque mágico e suficiente da passagem do tempo que pode
transformar o marinheiro iletrado Edmund Dantès, de sua cela imunda no
Castelo de If, no rico e articulado Conde de Monte Cristo, inteiramente
livre sob o sol de Marselha. Esse mais essencial dos truques literários
dá forma (por contraste) aos infernos de Kafka, reverte as lealdades em Otelo, reconcilia Darth Vader e Luke Skywalker, reaproxima Esaú de Jacó e reúne finalmente as duas irmãs nos últimos quadros de A Cor Púrpura. O tempo é o pai da reviravolta, que é a razão de ser da história.
Não se deixe portanto enganar por batalhas, bilhetes, traições,
chantagens, desencontros, promessas, poções, profecias, rompimentos,
jornadas, dragões ou labirintos; esses são na história meros incidentes
(essencialmente intercambiáveis) destinados a mascarar o essencial: que
é a passagem do tempo que patrocina o milagre e fabrica a reviravolta.
Deus usa, descaradamente, o recurso da passagem do tempo para nos
surpreender, instigar e iluminar. O tempo é o fazedor de milagres, o
professor e o carrasco por excelência; é o que nos restaura e converte e
exaure e revigora e transfigura e justifica e por fim, com um exagero
canastrão, mata. O tempo é a matéria-prima do assombro, a raiz da
concatenação. É o truque literário mais antigo de todos, que faz
inevitavelmente o jovem se perguntar quem é o velho que está olhando
para ele de dentro do espelho.
Com a passagem do tempo, vemos arruinado o que pensávamos ser
inabalável, e restaurado o que pensávamos estar perdido para sempre. A
passagem do tempo imbui significado no que nos parecia no primeiro
momento casual; instila a esperança e nega-a terrivelmente e,
terrivelmente, restaura-a. Em sua crueza, o tempo nos diz sem rodeios
que o Brabo tem quase quarenta anos e ainda não se casou, que os
cristãos aguardam pela segunda vinda do Messias de Davi por mais tempo
que os descendentes de Davi tiveram de aguardar a primeira, que o
cenário da nossa infância – que deveria por direito ser eterno – está
irrecuperavelmente perdido e que as mais atordoantes novidades
destinam-se a ser recordações de velhinhos. A passagem do tempo
transforma amigos em inimigos, inimigos em amigos, cria incontáveis
motivos e chaves e gatilhos que poderemos talvez reconhecer quando
reaparecerem na história; faz-nos quebrar sensatamente terríveis
promessas que fizemos a nós mesmos, deixa-nos encontrar gratidão na mais
horrenda ausência e beleza onde só parecia haver dor. Transforma homens
notáveis em monstros, bandidos em heróis; introduz um novo personagem
quando nosso enredo parecia ter encontrado um beco sem saída, ou torna
querido aliado o mais incompatível dos conhecidos de longa data. Com uma
cadência sem pressa de faquir, faz com que acabemos reavaliando nossa
visão e nossa sentença sobre Michael Jackson, sobre Hitler, sobre
Lutero, sobre Jesus, sobre Deus, sobre o vizinho do apartamento ao lado,
sobre o amigo de infância, sobre nós mesmos.
E esse momento final de reavaliação ou descoberta diz respeito ao
segundo recurso literário por excelência, aquele que explora o problema e
as possibilidades da identidade. Todas as histórias são bailes de
máscaras, girando de alguma forma ao redor da nossa ignorância e da
eventual descoberta de quem realmente somos e de com quem realmente estamos falando. A questão da identidade,
juntamente com a passagem do tempo, é engrenagem essencial de todas as
histórias que a imaginação humana já concebeu ou – pior – experimentou.
De Chapeuzinho Vermelho (“Para que esses olhos tão grandes?”) a O Sexto Sentido
(“Eu vejo pessoas mortas” “Quando? Nos seus sonhos?” “Não. O tempo
todo”), o eixo mais fundamental de toda narrativa é a jornada de
autodescoberta do protagonista e sua descoberta da natureza última do
universo – sua identidade e a identidade do mundo – questões que com
freqüência são resolvidas por uma mesma e formidável resposta.
A questão da identidade pode naturalmente ser explorada em múltiplos
níveis. Em Agatha Christie, o jogo limita-se à descoberta da identidade
do assassino; em A Conferência dos Pássaros, de Farid al-Din
Attar, a busca é pela identidade da Divindade, e a resposta está em sua
relação com o indivíduo. O problema pode ser ainda determinar qual é a
identidade do benfeitor, qual é minha identidade em relação ao meu
antagonista (Darth Vader para Luke Skywalker: “Eu sou seu pai”), ou qual
se mostrará o caráter do herói diante da adversidade. A história
existe, primordialmente, para definir quem -é o herói-
somos
em relação aos outros e quem os outros são em relação aele nós.
somos
em relação aos outros e quem os outros são em relação a
Quando descobrir quem é Deus o homem saberá quem é e o que deve fazer.
Os livros sagrados de todas as culturas se propõem, cada um à sua
maneira, a assinalar a verdadeira identidade do homem, ou seja, sua
verdadeira relação com o mundo. A Bíblia escolhe fazê-lo pelo método
lateral da narrativa: o pressuposto dos escritores bíblicos é que a
identidade do homem ficará clara apenas mediante a revelação – isto é, o
desmascaramento da identidade – de Deus no mundo real. Quando descobrir
quem é Deus, é a tônica da narrativa bíblica, o homem saberá quem é e o
que deve fazer (“Diga-me o seu nome”, exige Jacó do homem com quem está
lutando na margem do ribeirão Jaboque. O homem fornece a Jacó uma nova
identidade, Israel, – “aquele que luta com Deus” – revelando ao mesmo
tempo a sua).
Mas sendo nós mesmos personagens dessa história em andamento, o
enredo está longe de sossegar num desfecho. Ainda vemos tanto a nós
mesmos quanto Deus “como que por um espelho” – isto é, ofuscados por
vertiginosos incidentes dramáticos que não saberemos talvez interpretar e
incessantemente despistados pelos truques baratos do roteirista. O
baile de máscaras ainda não terminou, e a questão da nossa identidade e
da identidade divina são mistérios pendentes à espera de um desenlace. O
ensino de Jesus, em particular, fornece indícios de que na cena final o
problema da identidade merecerá uma resposta incomum: “quem é o meu
próximo?”; “quando o fizestes a qualquer um destes pequeninos, a mim o
fizestes”; “quem vê a mim vê ao Pai” – e assim por diante.
“Você sabe com quem está falando?” talvez seja a última pergunta a receber uma resposta.
* * *
Todos os truques de Deus para falar conosco são literários, e
resumem-se no fim das contas a dois: a passagem do tempo e os
desencontros da identidade.
Perfeito emblema da utilização coordenada desses recursos está na
história de José, filho de Jacó (Gênesis 37-47). Ao contrário de seus
antepassados, que jantaram com Deus, passearam, lutaram e assinaram
acordos com ele, José teve de encontrar Deus na face terrível,
indistinta e fluida da História. Para falar com ele, Deus provoca-o com a
questão da identidade – quem é realmente José? – enchendo-o de
sonhos premonitórios que só farão verdadeiro sentido muito tempo
depois. A narrativa em si é impulsionada pela mágica poderosa da
passagem do tempo, que tudo permite: José é um pastorzinho mimado entre
irmãos que o odeiam, depois mercadoria numa caravana de ismaelistas,
depois ajudante de confiança do homem de quem é escravo, depois
prisioneiro entre estrangeiros hostis, depois intérprete dos sonhos do
faraó, depois seu braço direito, depois salvador da civilização, depois
autoridade diante da qual dobram-se irmãos que o veneram sem saber,
depois salvador de sua própria família.
É apenas ao final desse fluxo que fica definitivamente estabelecida a
verdadeira identidade de José perante os outros e perante si mesmo.
Para aumentar o impacto dessa revelação o roteirista faz com que no
Egito, a que os filhos de Jacó vão como último recurso em busca de
comida, o régio José reconheça seus irmãos, mas não seja reconhecido por
eles. José, ao fim da sua jornada, sabe quem é e o que representa para
os outros – conhece sua identidade1
– mas seus irmãos não sabem quem são e tampouco conhecem sua relação
com quem estão falando. Magnânimo, José escolhe repartir sua nova
identidade de forma a acolher, salvar e restaurar sua família. E
finalmente, numa reviravolta adicional, José sabe reconhecer, nos
incidentes aparentemente arbitrários que o levaram àquela posição, a
identidade generosa e a mão oculta e redentora do próprio Deus:
“Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus, que me pôs
por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em
toda a terra do Egito. Deus me enviou adiante de vós, para conservar
vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida por um grande
livramento” (Gênesis 45:8,7).
Cabe supor que Deus esteja falando incessantemente conosco, e esteja
fazendo isso através dos velhos recursos literários da passagem do tempo
e das máscaras da identidade. Não estamos naturalmente entendendo o que
ele está querendo dizer, mas essa ignorância faz aparentemente parte
integrante de todo roteiro; se tudo der certo, não seremos prejudicados
demais por essa ignorância, nem será ela permanente.
Somos a narração em primeira pessoa de uma história que aguarda em
tremente expectativa uma reviravolta. A passagem do tempo, entre os
presentes de sua liberalidade, acabará talvez resolvendo o mistério da
nossa identidade.
1 O Conde de Monte Cristo de
Dumas é, naturalmente, uma reelaboração da história de José, dependendo
dos mesmos recursos da passagem do tempo e recorrendo às mesmas
máscaras de identidade. Quem é de fato Edmund Dantès: um marinheiro
ingênuo de dezenove anos, um prisioneiro sem perspectivas ou um nobre
rico mas definido pelos seus rancores? Diante de quem o Conde de Monte
Cristo baixará a sua máscara?
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